quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Bugio Moqueado


— Uno!

Ugarte…

— Dos!

Adriano…

— Cinco…

Vilabona…

— …

Má colocação! Minha pule é a 32 e já de saída o azar me põe na frente Ugarte… Ugarte é furão. Na quiniela anterior foi quem me estragou o jogo. Querem ver que também me estraga nesta?

— Mucho, Adriano!

Qual Adriano, qual nada! Não escorou o saque, e lá está Ugarte com um ponto já feito. Entra Genúa agora? Ah, é outro ponto seguro para Ugarte. Mas quem sabe se com uma torcida…

— Mucho, Genúa!

Raio de azar! — Genúa “malou” no saque. Entra agora Melchior… Este Melchior às vezes faz o diabo. Bravos! Está agüentando… Isso, rijo! Uma cortadinha agora! Buena! Buena! Outra agora… Oh!… Deu na lata! Incrível…

Se o leitor desconhece o jogo da pelota em cancha pública — Frontão da Boa-Vista, por exem­plo, nada pescará desta gíria, que é na qual se entendem todos os aficionados que jogam em pules ou “torcem”.

Eu jogava, e portanto, falava e pensava assim. Mas como vi meu jogo perdido, desinteressei-me do que se passava na cancha e pus-me a ouvir a conversa de dois sujeitos velhuscos, sentados à minha esquerda.

“… coisa que você nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade pura. Fui testemunha, vi! Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo prato…”

“Horrendo prato?” Aproximei-me dos velhos um pouco mais e pus-me de ouvidos, alerta.

— “Era longe a tal fazenda”, continuou o homem. “Mas lá em Mato-Grosso tudo é longe. Cinco léguas é “ali”, com a ponta do dedo. Este troco miúdo de quilômetros, que vocês usam por cá, em Mato-Grosso não tem curso. E cada estirão!…

“Mas fui ver o gado. Queria arredondar uma ponta para vender em Barretos, e quem me tinha os novilhos nas condições requeridas, de idade e preço, era esse Coronel Teotônio, do Tremedal.

“Encontrei-o na mangueira, assistindo à domação dum potro — zaino, ainda me lembro… E, palavra d’honra! não me recordo de ter esbarrado nunca tipo mais impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entiotada de rugas, ar de carrasco… Pensei comigo: Dez mortes no mínimo. Porque lá é assim. Não há soldados rasos. Todo mundo traz galões… e aquele, ou muito me enganava ou tinha divisas de general.

“Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Aio Verde, um de “doze galões”, que “resistiu” ao tenente Galinha e, graças a esse benemérito “escumador de sertões”, purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos.

“Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de fora.

“Lá escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado.

“De volta do rodeio caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café de permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que, apesar da repulsão inspirada pe­lo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar oferecido.

“Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal arejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a cara e os modos do proprietário. Traste que se não parece com o dono é roubado, diz muito bem o povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do nariz — cheiro assim de carne mofada…

“Sentamo-nos à mesa, eu e ele, sem que viva alma surgisse para fazer companhia. E como de dentro não viesse nenhum rumor, conclui que o urutu morava sozinho — solteiro ou viúvo. Interpela-lo? Nem por sombras. A secura e a má cara do facínora não davam azo à mínima expansão de fami­lia­ri­dade; e, ou fosse real ou efeito do ambiente, pareceu-me ele inda mais torvo em casa do que fora em pleno sol.

“Havia na mesa feijão, arroz e lombo, além dum misterioso prato coberto em que não se buliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de engulhado pelo bafio a mofo, pus de lado o nariz, achei tudo bom e entrei a comer por dois.

“Correram assim os minutos.

“Em dado momento o urutu, tomando a faca, bateu no prato três pancadas misteriosas. Chama a cozinheira, calculei eu. Esperou um bocado e, como não aparecesse ninguém, repetiu o apelo com cer­to frenesi. Atenderam-no desta vez. Abriu-se devagarinho uma porta e enquadrou-se nela um vulto bran­co de mulher.

“Sonâmbula?

— Tive essa impressão. Sem pingo de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos vidrados, ca­da­véri­ca, dir-se-ia vinda do túmulo naquele momento. Aproximou-se, lenta, com passos de autômato, e sen­tou-se de cabeça baixa.

“Confesso que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabólico do urutu, aquela morta-viva mor­re-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes num calafrio de pavor. Em campo aberto não sou medroso — ao sol, em luta franca, onde vale a faca ou o 32. Mas escureceu? Entrou em cena o mistério? Ah! — bambeio de pernas e tremo que nem geléia! Foi assim naquele dia…

“Mal se sentou a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou para o lado dela o prato misterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto, que não pude identificar. Ao vê-lo a mu­lher estremeceu, como horrorizada.

— “Sirva-se!” disse o marido.

“Não sei porque, mas aquele convite revelava uma tal crueza que me cortou o coração como na­va­lha de gelo. Pressenti um horror de tragédia, dessas horrorosas tragédias familiares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fora ninguém nunca as suspeite. Desd’aí nunca ponho os olhos em cer­tos casarões sombrios sem que os imagine povoados de dramas horrendos. Falam-me de hienas. Co­nhe­ço uma: o homem…

“Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa, num tom cortante de ferocidade glacial.

— “Sirva-se, faça o favor!” E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a gentilmente no pra­to da mulher.

“Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e repuxos ner­vosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou para mim as pupilas vítreas e fi­cou assim uns instantes, como à espera dum milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a aflição humana calou…

“O milagre não veio — infame que fui! — e aquele lampejo de esperança, o derradeiro talvez que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de pálpebras. Os tiques nervosos di­mi­nuí­ram de freqüência, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo sonambúlico.

“Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro venenosamente…

“Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num escuro cárcere da Inquisição. Nem sei como digeri aqueles feijões!

“A sala tinha três portas, uma abrindo para a cozinha, outra para a sala de espera, a terceira para a despensa. Com os olhos já afeitos à escuridão, eu divisava melhor as coisas; enquanto aguar­dá­vamos o café, corri-os pelas paredes e pelos móveis, distraidamente. Depois, como a porta da despensa estivesse entreaberta, enfiei-os por ela a dentro. Vi lá umas brancuras pelo chão sacos de mantimento — e, pendurada a um gancho, uma coisa preta que me intrigou. Manta de carne seca? Roupa velha? Estava eu de rugas na testa a decifrar a charada, quando o urutu, percebendo-o, silvou em tom cor­tan­te:

— “É curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço…

“Vexadíssimo, mas sempre em guarda, achei de bom conselho engolir o insulto e calar-me. Ca­lei-me. Apesar disso o homem, depois duma pausa, continuou, entre manso e irônico:

— “Coisas da vida, moço. Aqui a patroa pela-se por um naco de bugio moqueado, e ali dentro há um para abastecer este pratinho… Já comeu bugio moqueado, moço?

— “Nunca! Seria o mesmo que comer gente…

— “Pois não sabe o que perde!… filosofou ele, como um diabo, a piscar os olhinhos de cobra.

Neste ponto o jogo interrompeu-me a estória. Melchior estava colocado e Gaspar, com três pon­tos, sacava para Ugarte. Houve luta; mas um “camarote” infeliz de Gaspar deu o ponto a Ugarte. “Pintou” a pule 13, que eu não tinha. Jogo vai, jogo vem, “despintou” a 13 e deu a 23. Pela terceira vez Ugarte estragava-me o jogo. Quis insistir mas não pude. A estória estava no apogeu e antes “per­der de ganhar” a próxima quiniela do que perder um capitulo da tragédia. Fiquei no lugar, muito aten­to, a ouvir o velhote.

“Quando me vi na estrada, longe daquele antro, criei alma nova. Fiz cruz na porteira. “Aqui nunca mais! Credo!” e abri de galopada pela noite adentro.

Passaram-se anos.

“Um dia, em Três Corações, tomei a serviço um preto de nome Zé Esteves. Traquejado da vida e sério, meses depois virava Esteves a minha mão direita. Para um rodeio, para curar uma bicheira, para uma comissão de confiança, não havia outro. Negro quando acerta de ser bom vale por dois bran­cos. Esteves valia por quatro.

“Mas não me bastava. O movimento crescia e ele sozinho não dava conta. Empenhado em des­cobrir um novo auxiliar que o valesse, perguntei-lhe uma vez:

— “Não teria você, por acaso, algum irmão de sua força?

— “Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não existe mais…

— “De que morreu?

— “De morte matada. Foi morto a rabo de tatu… e comido.

— “Comido? repeti com assombro.

— “É verdade. Comido por uma mulher.

A estória complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifração.

— “Leandro, continuou ele, era um rapaz bem apessoado e bom para todo serviço. Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em…

— “… em Mato-Grosso? Do Coronel Teotônio?

— Isso! Como sabe? Ah, esteve lá! Pois dê graças de estar vivo; que entrar na casa do car­ras­co era fácil, mas sair? Deus me perdoe, mas aquilo foi a maior peste que o raio do diabo do barzabu do canhoto botou no mundo!…

— O urutu, murmurei, recordando-me. Isso mesmo…

— “Pois o Leandro — não sei que intrigante malvado inventou que ele… que ele, perdão da pa­lavra, andava com a patroa, uma senhora muito alva, que parecia uma santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi feitiçaria da Luduina, aquela mulata amiga do coronel. Mas, inocente ou não, foi que o pobre do Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de martírio — lepte! lepte! E pimenta em cima… Morreu. E depois que morreu foi moqueado.

— “???”

— “Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram aquela carne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho para a patroa comer…

Mudei-me de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela a cinqüenta metros de distância. Mas não pude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha, não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13…

Monteiro Lobato



Monteiro Lobato dispensa apresentação. Não há quem não conheça o escritor criador da fantástica série de livros infantis do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Também é bastante conhecido seu lado jornalista, analista político, pensador da realidade brasileira e nacionalista convicto. Além disso, foi um visionário, difundindo a importância do petróleo para a economia brasileira e até mesmo prevendo a eleição de um negro para presidente dos Estados Unidos, no livro O Presidente Negro. Algo inimaginável em 1926.

O que não é tão conhecido é seu lado de escritor adulto. E nessa categoria, está um dos contos mais impressionantes que já li na minha vida. E olha que já li muito, na minha vida.

Bugio Moqueado é um conto quase de horror, que me deixou profundamente impressionado na primeira vez em que li. Coisa de deixar um arrepio na espinha mesmo.

Sobre o título, bugio é uma espécie de macaco e moquear é uma forma de secar a carne ao fogo, para conservar. Com vocês, Bugio Moqueado, de Monteiro Lobato.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Estações: frutas, verduras e legumes

Janeiro

  • Frutas: abacaxi, carambola, coco verde, figo, framboesa, fruta do conde, laranja-pera, mamão, maracujá, melancia, nectarina e uva;
  • Verduras: alface, cebolinha, couve e salsa;
  • Legumes: abóbora, abobrinha, beterraba, pepino, pimentão, quiabo e tomate.

Fevereiro

  • Frutas: abacate, ameixa, carambola, coco verde, figo, fruta do conde, goiaba, jaca, maçã, pera, pêssego, seriguela e uva;
  • Verduras: escarola, hortelã e repolho;
  • Legumes: abóbora, gengibre, milho verde, pepino, pimentão, quiabo e tomate.

Março

  • Frutas: abacate, abacaxi, ameixa, banana-maçã, banana-nanica, coco verde, figo, fruta do conde, goiaba, jaca, limão, maçã, mamão, mangostão, nectarina, pera, uva, pêssego, seriguela e tangerina;
  • Verduras: acelga, alface, alho-poró, coentro, endívia, escarola, repolho, rúcula e salsa;
  • Legumes: abóbora, abobrinha, berinjela, beterraba, cará, chuchu, gengibre, inhame, jiló, milho-verde, nabo, pepino, quiabo e tomate.

Abril

  • Frutas: abacate, ameixa, banana-maçã, caqui, cidra, jaca, kiwi, maçã, mamão, pera, tangerina e uva;
  • Verduras: alface, alho-poró, almeirão, catalonha, escarola e repolho;
  • Legumes: abóbora, abrobrinha, berinjela, beterraba, cará, chuchu, gengibre, inhame, nabo, pepino e tomate.

Maio

  • Frutas: abacate, banana-maçã, caqui, jaca, kiwi, maçã, pera, tangerina e uva;
  • Verduras: alho-poró, almeirão, erva-doce, louro, nabo;
  • Legumes: abóbora, abobrinha, batata-doce, berinjela, beterraba, cará, cenoura, chuchu, inhame, mandioca, mandioquinha, nabo e rabanete.

Junho

  • Frutas: carambola, kiwi, laranja-lima, mangostão, marmelo, mexerica e tangerina;
  • Verduras: agrião, alho-poró, almeirão, brócolis e erva-doce;
  • Legumes: abóbora, batata-doce, berinjela, cará, cenoura, ervilha, gengibre, inhame, mandioca, mandioquinha, milho-verde e palmito.

Julho

  • Frutas: carambola, kiwi, laranja-lima, mexerica e tangerina;
  • Verduras: agrião, alho-poró, chicória, coentro, couve, erva-doce, espinafre, mostarda e salsão;
  • Legumes: cenoura, abóbora, batata-doce, cará, cogumelo, ervilha, inhame, mandioca, mandioquinha, milho-verde, nabo, palmito, pepino e rabanete.

Agosto

  • Frutas: banana-nanica, caju, carambola, kiwi, laranja-pera, lima, maçã, mamão, mexerica, morango e tangerina;
  • Verduras: agrião, alho-poró, brócolis, chicória, coentro, couve, couve-flor, erva-doce, escarola, espinafre, mostarda e rúcula;
  • Legumes: abóbora, abobrinha, cará, cenoura, ervilha, fava, inhame, mandioca, mandioquinha, nabo, pimentão e rabanete.

Setembro

  • Frutas: abacaxi, banana-nanica, caju, jabuticaba, laranja-lima, laranja-pera, maçã, mexerica, nêspera, tamarindo e tangerina;
  • Verduras: alho-poró, almeirão, brócolis, chicória, couve, couve-flor, erva-doce, espinafre, louro e orégano;
  • Legumes: abóbora, abobrinha, cará, cogumelo, ervilha, fava, inhame, pimentão e rabanete.

Outubro

  • Frutas: abacaxi, acerola, banana-nanica, banana-prata, caju, manga, coco-verde, jabuticaba, laranja-pera, lima, maçã, mamão, nêspera e tangerina;
  • Verduras: alho-poró, almeirão, brócolis, catalonha, cebolinha, chicória, coentro, couve-flor, erva-doce, espinafre, folha de uva, hortelã, mostarda e orégano;
  • Legumes: abóbora, abobrinha, alcachofra, aspargos, batata-doce, berinjela, beterraba, cenoura, cogumelo, ervilha, fava, inhame, pepino, pimentão, rabanete, tomate e tomate-caqui.

Novembro

  • Frutas: abacaxi, acerola, banana-nanica, banana-prata, caju, coco verde, framboesa, jaca, laranja-pera, maçã, mamão, manga, maracujá, melancia, melão, nectarina, pêssego e tangerina;
  • Verduras: alho-poró, almeirão, brócolis, cebolinha, endívia, erva-doce, espinafre e folha de uva;
  • Legumes: abobrinha, aspargos, berinjela, beterraba, cenoura, inhame, maxixe, nabo, pepino, pimentão e tomate.

Dezembro

  • Frutas: abacaxi, ameixa, banana-prata, cereja, coco verde, damasco, figo, framboesa, graviola, kiwi, laranja-pera, limão, lichia, maçã, manga, maracujá, melancia, melão, nectarina, pêssego, romã e uva;
  • Verduras: almeirão, cebolinha, endívias, erva-doce, folha de uva, hortelã, orégano, rúcula, salsa e salsão;
  • Legumes: abobrinha, beterraba, cenoura, cogumelo, pimentão, tomate e vagem macarrão.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Solução Final


Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Carta de Göring para Reinhard Heydrich (31 de julho de 1941), determinando a elaboração de um plano para solução final da questão judaica (Endlösung der Judenfrage) [1][2][3]
Carta datada de 26 de fevereiro de 1942, de Reinhard Heydrich para o diplomata alemão Martin Luther, após a Conferência de Wannsee pedindo apoio administrativo para implementação da solução final para a questão judaica.

Solução final ou solução final da questão judaica (do alemão Endlösung der Judenfrage) refere-se ao plano nazista de remover a população judia de todos os territórios ocupados pela Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial.
A expressão aparece em uma carta do general das SS Reinhard Heydrich ao diplomata Martin Luther, do Ministério do Exterior alemão. Na carta, Heydrich solicita a participação do Ministério na implementação da "solução final para a questão judaica", ou seja, remover os judeus dos territórios ocupados pela Alemanha, conforme fora decidido pelas lideranças nazistas. Anexa à carta estava a ata da conferência de Wannsee, na qual havia sido anunciado que Heydrich seria o principal responsável pelo cumprimento daquela decisão.[4]

Origem

 

Em 31 de Julho de 1941, sob instruções de Adolf Hitler, Hermann Göring enviou uma carta a Reinhard Heydrich determinando que este lhe submetesse, assim que possível, um plano geral, incluindo uma previsão de meios materiais e organizacionais necessários para implementar uma solução final para a questão judaica.[2]
 
Os nazis concentraram populações judias em guetos e mais tarde em campos de concentração.
Na conferência de Wannsee, que teve lugar em Berlim, no dia 20 de janeiro de 1942, um grupo de oficiais nazis foi instruído sobre "a solução final da questão judia". Os registros e minutas do que se passou na conferência foram recuperados pelos Aliados somente em 1947 (depois dos julgamentos de Nuremberg). No entanto, a expressão Endlösung der Judenfrage não aparece nesses documentos. [5].

Ver também

Bibliografia

  • ROSEMAN, MARK. Os nazistas e a solução final: a conspiração de Wannsee: do assassinato em massa ao genocídio. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003. ISBN 85-7110-697-5


Ícone de esboço Este artigo sobre História ou um(a) historiador(a) é um esboço relacionado ao Projeto História. Você pode ajudar a Wikipédia expandindo-o.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

BUGIO MOQUEADO

 

Uno! 

Ugarte… 

Dos!

Adriano…
Cinco
Vilabona…
— …
Má colocação! Minha pule é a 32 e já de saída o azar me põe na frente Ugarte… Ugarte é furão. Na quiniela anterior foi quem me estragou o jogo. Querem ver que também me estraga nesta?
Mucho, Adriano!
Qual Adriano, qual nada! Não escorou o saque, e lá está Ugarte com um ponto já feito. Entra Genúa agora? Ah, é outro ponto seguro para Ugarte. Mas quem sabe se com uma torcida…
Mucho, Genúa!
Raio de azar! — Genúa “malou” no saque. Entra agora Melchior… Este Melchior às vezes faz o diabo. Bravos! Está agüentando… Isso, rijo! Uma cortadinha agora! Buena! Buena! Outra agora… Oh!… Deu na lata! Incrível…
Se o leitor desconhece o jogo da pelota em cancha pública — Frontão da Boa-Vista, por exem­plo, nada pescará desta gíria, que é na qual se entendem todos os aficionados que jogam em pules ou “torcem”.
Eu jogava, e portanto, falava e pensava assim. Mas como vi meu jogo perdido, desinteressei-me do que se passava na cancha e pus-me a ouvir a conversa de dois sujeitos velhuscos, sentados à minha esquerda.
“… coisa que você nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade pura. Fui testemunha, vi! Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo prato…”
“Horrendo prato?” Aproximei-me dos velhos um pouco mais e pus-me de ouvidos, alerta.
— “Era longe a tal fazenda”, continuou o homem. “Mas lá em Mato-Grosso tudo é longe. Cinco léguas é “ali”, com a ponta do dedo. Este troco miúdo de quilômetros, que vocês usam por cá, em Mato-Grosso não tem curso. E cada estirão!…
“Mas fui ver o gado. Queria arredondar uma ponta para vender em Barretos, e quem me tinha os novilhos nas condições requeridas, de idade e preço, era esse Coronel Teotônio, do Tremedal.
“Encontrei-o na mangueira, assistindo à domação dum potro — zaino, ainda me lembro… E, palavra d’honra! não me recordo de ter esbarrado nunca tipo mais impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entiotada de rugas, ar de carrasco… Pensei comigo: Dez mortes no mínimo. Porque lá é assim. Não há soldados rasos. Todo mundo traz galões… e aquele, ou muito me enganava ou tinha divisas de general.
“Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Aio Verde, um de “doze galões”, que “resistiu” ao tenente Galinha e, graças a esse benemérito “escumador de sertões”, purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos.
“Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de fora.
“Lá escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado.
“De volta do rodeio caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café de permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que, apesar da repulsão inspirada pe­lo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar oferecido.
“Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal arejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a cara e os modos do proprietário. Traste que se não parece com o dono é roubado, diz muito bem o povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do nariz — cheiro assim de carne mofada…
“Sentamo-nos à mesa, eu e ele, sem que viva alma surgisse para fazer companhia. E como de dentro não viesse nenhum rumor, conclui que o urutu morava sozinho — solteiro ou viúvo. Interpela-lo? Nem por sombras. A secura e a má cara do facínora não davam azo à mínima expansão de fami­lia­ri­dade; e, ou fosse real ou efeito do ambiente, pareceu-me ele inda mais torvo em casa do que fora em pleno sol.
“Havia na mesa feijão, arroz e lombo, além dum misterioso prato coberto em que não se buliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de engulhado pelo bafio a mofo, pus de lado o nariz, achei tudo bom e entrei a comer por dois.
“Correram assim os minutos.
“Em dado momento o urutu, tomando a faca, bateu no prato três pancadas misteriosas. Chama a cozinheira, calculei eu. Esperou um bocado e, como não aparecesse ninguém, repetiu o apelo com cer­to frenesi. Atenderam-no desta vez. Abriu-se devagarinho uma porta e enquadrou-se nela um vulto bran­co de mulher.
“Sonâmbula?
— Tive essa impressão. Sem pingo de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos vidrados, ca­da­véri­ca, dir-se-ia vinda do túmulo naquele momento. Aproximou-se, lenta, com passos de autômato, e sen­tou-se de cabeça baixa.
“Confesso que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabólico do urutu, aquela morta-viva mor­re-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes num calafrio de pavor. Em campo aberto não sou medroso — ao sol, em luta franca, onde vale a faca ou o 32. Mas escureceu? Entrou em cena o mistério? Ah! — bambeio de pernas e tremo que nem geléia! Foi assim naquele dia…
“Mal se sentou a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou para o lado dela o prato misterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto, que não pude identificar. Ao vê-lo a mu­lher estremeceu, como horrorizada.
— “Sirva-se!” disse o marido.
“Não sei porque, mas aquele convite revelava uma tal crueza que me cortou o coração como na­va­lha de gelo. Pressenti um horror de tragédia, dessas horrorosas tragédias familiares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fora ninguém nunca as suspeite. Desd’aí nunca ponho os olhos em cer­tos casarões sombrios sem que os imagine povoados de dramas horrendos. Falam-me de hienas. Co­nhe­ço uma: o homem…
“Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa, num tom cortante de ferocidade glacial.
— “Sirva-se, faça o favor!” E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a gentilmente no pra­to da mulher.
“Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e repuxos ner­vosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou para mim as pupilas vítreas e fi­cou assim uns instantes, como à espera dum milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a aflição humana calou…
“O milagre não veio — infame que fui! — e aquele lampejo de esperança, o derradeiro talvez que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de pálpebras. Os tiques nervosos di­mi­nuí­ram de freqüência, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmo sonambúlico.
“Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro venenosamente…
“Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num escuro cárcere da Inquisição. Nem sei como digeri aqueles feijões!
“A sala tinha três portas, uma abrindo para a cozinha, outra para a sala de espera, a terceira para a despensa. Com os olhos já afeitos à escuridão, eu divisava melhor as coisas; enquanto aguar­dá­vamos o café, corri-os pelas paredes e pelos móveis, distraidamente. Depois, como a porta da despensa estivesse entreaberta, enfiei-os por ela a dentro. Vi lá umas brancuras pelo chão sacos de mantimento — e, pendurada a um gancho, uma coisa preta que me intrigou. Manta de carne seca? Roupa velha? Estava eu de rugas na testa a decifrar a charada, quando o urutu, percebendo-o, silvou em tom cor­tan­te:
— “É curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço…
“Vexadíssimo, mas sempre em guarda, achei de bom conselho engolir o insulto e calar-me. Ca­lei-me. Apesar disso o homem, depois duma pausa, continuou, entre manso e irônico:
— “Coisas da vida, moço. Aqui a patroa pela-se por um naco de bugio moqueado, e ali dentro há um para abastecer este pratinho… Já comeu bugio moqueado, moço?
— “Nunca! Seria o mesmo que comer gente…
— “Pois não sabe o que perde!… filosofou ele, como um diabo, a piscar os olhinhos de cobra.
Neste ponto o jogo interrompeu-me a estória. Melchior estava colocado e Gaspar, com três pon­tos, sacava para Ugarte. Houve luta; mas um “camarote” infeliz de Gaspar deu o ponto a Ugarte. “Pintou” a pule 13, que eu não tinha. Jogo vai, jogo vem, “despintou” a 13 e deu a 23. Pela terceira vez Ugarte estragava-me o jogo. Quis insistir mas não pude. A estória estava no apogeu e antes “per­der de ganhar” a próxima quiniela do que perder um capitulo da tragédia. Fiquei no lugar, muito aten­to, a ouvir o velhote.
“Quando me vi na estrada, longe daquele antro, criei alma nova. Fiz cruz na porteira. “Aqui nunca mais! Credo!” e abri de galopada pela noite adentro.
Passaram-se anos.
“Um dia, em Três Corações, tomei a serviço um preto de nome Zé Esteves. Traquejado da vida e sério, meses depois virava Esteves a minha mão direita. Para um rodeio, para curar uma bicheira, para uma comissão de confiança, não havia outro. Negro quando acerta de ser bom vale por dois bran­cos. Esteves valia por quatro.
“Mas não me bastava. O movimento crescia e ele sozinho não dava conta. Empenhado em des­cobrir um novo auxiliar que o valesse, perguntei-lhe uma vez:
— “Não teria você, por acaso, algum irmão de sua força?
— “Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não existe mais…
— “De que morreu?
— “De morte matada. Foi morto a rabo de tatu… e comido.
— “Comido? repeti com assombro.
— “É verdade. Comido por uma mulher.
A estória complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifração.
— “Leandro, continuou ele, era um rapaz bem apessoado e bom para todo serviço. Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em…
— “… em Mato-Grosso? Do Coronel Teotônio?
— Isso! Como sabe? Ah, esteve lá! Pois dê graças de estar vivo; que entrar na casa do car­ras­co era fácil, mas sair? Deus me perdoe, mas aquilo foi a maior peste que o raio do diabo do barzabu do canhoto botou no mundo!…
— O urutu, murmurei, recordando-me. Isso mesmo…
— “Pois o Leandro — não sei que intrigante malvado inventou que ele… que ele, perdão da pa­lavra, andava com a patroa, uma senhora muito alva, que parecia uma santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi feitiçaria da Luduina, aquela mulata amiga do coronel. Mas, inocente ou não, foi que o pobre do Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de martírio — lepte! lepte! E pimenta em cima… Morreu. E depois que morreu foi moqueado.
— “???”
— “Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram aquela carne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho para a patroa comer…
Mudei-me de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela a cinqüenta metros de distância. Mas não pude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha, não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13…

Monteiro Lobato, 1925